Depois de uma expectativa que durou cerca de dois anos, finalmente pude assistir
Ensaio Sobre a Cegueira, aguardada adaptação da obra de José Saramago, realizada pelo diretor Fernando Meirelles. E nada melhor do que assistir ao filme com alguém que é fascinado pela literatura portuguesa, neste caso, meu amigo Elias, que a cada cena parecia mais e mais emocionado. Depois de assistir e pesquisar em fóruns da internet em busca das opiniões de outras pessoas, foi fácil entender porque os americanos receberam este filmaço tão friamente. Não se trata de um filme fácil de acompanhar, especialmente para quem está acostumado a outro tipo de fim de mundo - aquele que se passa em Nova York e que é apinhado de toda espécie de efeito digital, algo como
Eu Sou a Lenda, com Will SMith (e Alice Braga).
Em
Cegueira, o fim do mundo acontece em uma cidade sem nome (cujas paisagens urbanas foram captadas com maestria em Toronto, São Paulo e Tóquio), com pessoas cujos nomes também não são mencionados. Não dá para um público pasteurizado como é o dos Estados Unidos entender uma história sem ter um herói (com um nome) que lute pela sobrevivência do "sonho americano". Não há nada neste filme que o assemelhe a uma produção hollywoodiana, a não ser é claro o elenco, composto por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Alice Braga, Gael Garcia Bernal e Maury Chaykin.
A produção acompanha a história de uma intrigante epidemia de uma espécie de cegueira branca, que começa com um japonês yuppie e se espalha por todo o país. Logo que se constata a epidemia, os contaminados são enviados a um hospício desativado, onde ficarão em quarentena. Logo de cara percebe-se um grupo heterogêneo, cuja única identificação é um número e uma profissão. Os nomes enquanto identidades externas não importam para quem só consegue enxergar (ou imaginar) o interior do outro. No grupo estão o primeiro contagiado, o oftalmologista que o atendeu, sua esposa (como a única que enxerga mas tem que fingir que não vê para acompanhar o marido) e outros que de alguma maneira se relacionaram com o japonês que deu início a tudo. Não demora muito e a quarentena parece pior do que um campo de concentração nazista: imundície por todos os lados, banheiros podres, urina e fezes espalhados pelos corredores.
Como se não fosse o bastante, um homem que se denomina o Rei da Ala 3 (Gael Garcia Bernal) decide tomar o controle da comida destinada aos doentes. Ele possui uma arma, o que o habilita a tomar o poder e infligir horrores que só alguém com a alma cega poderia impor.
Temos em
Ensaio Sobre a Cegueira uma alegoria genial, filmada brilhantemente e contada com perfeição que até as cenas mais polêmicas e antecipadas semanas antes do lançamento são vistas como sequência (e consequência) de tudo o que se viu até ali. Há momentos nos quais a brancura das imagens é tão clara que até o espectador se sente cego, compartilhando do desespero dos personagens. Em uma cena emblemática, o menino que se perdeu dos pais depois de ter perdido a visão está andando pela enfermaria da quarentena, certo de que perto da porta de saída há uma cama baixa, e é o que nós vemos; mas logo que se aproxima do que seria a cama, a imagem mostra uma mesa alta, enganando não apenas o ator, mas a todos os que viram primeiramente a cama. Um toque de gênio, dentre os muitos artifícios que Meirelles usa para envolver o público.
Julianne Moore, com sua atuação contida a princípio e cheia de energia e vitalidade posteriormente, merece um Oscar. Prêmio que não deve ganhar, uma vez que o filme foi um fracasso na terra do Tio Sam.
Em suma, o que se enxerga em
Ensaio Sobre a Cegueira é muito mais do que mais um filme apocalíptico.
Pode haver lágrimas, asco, risos, rancor, mas no fim o que prevalece neste filme é a esperança.